A Política nunca foi um tema distinto ou apartado da vida do cristão, bem ao contrário, a vida política para os cristãos sempre foi um reflexo da Justiça Divina, exercida na terra por homens e mulheres de boa vontade. Embora a virtude política não tenha sido, primeiramente, abordada pelos cristãos, mas pelos filósofos gregos Platão e Aristóteles, os quais, bem antes de Cristo, iniciaram a reflexão acerca da conduta política dos homens. Esses filósofos exaltaram a virtude e a ética como fios condutores para o exercício da política, apresentaram as diferentes formas de governos que existiam no período antigo.
De forma extraordinária, Aristóteles já exaltava a virtude como condição sine qua non para o homem exercer a política, sobretudo a virtude da justiça que ocupava lugar central para o estabelecimento da vida política saudável. Para esse filósofo ... “o homem nasce com a prudência e a virtude como suas armas”. Ainda segundo Aristóteles, sem a virtude, o homem é o ser mais ímpio e selvagem, entregue aos prazeres sexuais e à alimentação. A justiça, conforme o estagirita, “é uma prática política; pois a justiça é a ordem da comunidade política, e a justiça é a eleição do que é justo”. É deste filósofo a célebre frase “por natureza o homem é um animal político”.[1]
Muitos acreditam que a política, ao se relacionar com a ética cristã, deve simplesmente reproduzir a práxis da polis grega. De fato, a igreja católica, através de seus doutores teólogos, sempre buscou aprender com o legado da filosofia grega antiga. Do século IV ao século XIV a maioria dos europeus acreditava prolongar a civilização antiga no que ela tinha de melhor. Mas, ao refletirmos acerca de séculos da cristandade, ou seja, uma sociedade que teve por base o ethos dos povos cristãos,[2] constatamos que a dimensão política cristã está além do aspecto imanente da vida humana. Existe um valor maior de transcendência por parte dos cristãos ao abordar os temas da vida social. A Escritura Sagrada traz inúmeras passagens em que exorta os cristãos a serem íntegros na sua conduta e não fazerem acepção de pessoas – ricas ou pobres – para não ser comparado a “um juiz com raciocínio perverso”, consoante a carta do apóstolo Tiago. Segue este apóstolo exortando os ricos a não colocar o lucro em primeiro lugar, mas antes de realizar negócios comerciais, pensar na dependência e Providencia Divina, que dispõe toda a vida do homem, porque mesmo os grandes comerciantes que obtém grandes lucros “ não passais de vapor que se vê por alguns instantes e depois logo se desfaz”.[3] Aqui há uma conduta ética que permeia uma forma de relacionamento, não pautado em bens materiais e títulos, mas tendo em vista a brevidade da vida terrena e imortalidade da alma. Para os cristãos, portanto, a vida humana não se encerrava na imanência, mas na busca pelas “coisas do alto” cf. Cl 3,1, e cada ato humano tinha por finalidade a vida eterna, “ver o Cristo face a face” I cor. 13,9-12.
A percepção cristã de transcendência não acarretou, em nenhum momento, menosprezo pela vida terrena, pelas realidades temporais, ao contrário, os cristãos sempre tiveram como meta também a construção do reino de Deus já aqui na terra. Os cristãos, portanto, não se eximiam de manifestar a fé em cristo em sua maneira de viver, ou seja, o ethos cristão apontou para o ocidente uma nova forma social, a ética do amor ao seu semelhante, acima de todos os bens materiais, riqueza, posses, festas, regalias etc. E aqui não se trata de um princípio anárquico do tipo “nada é de ninguém e não estou nem aí para vida material ordenada”. Não! A vida cristã tem uma ordem bem definida, no centro o amor a Deus e ao seu semelhante, secundariamente os demais bens.
Nesse sentido, três documentos antigos são exemplares: a carta do cristão Aristides de Atenas ao imperador Adriano; a carta a Diogneto (autor desconhecido) e a carta de Atenágoras, filósofo de Atenas. Esses três documentos são datados do início do século II e apresentaram a concretude dos atos dos cristãos, que eram homens com os pés na realidade da vida, sem perder a esperança e expectativa da vida eterna.
Aristides de Atenas, em sua carta, apresentou ao rei quais eram suas maneiras de vida: não cometem adultério, não praticam a fornicação, não levantam falso testemunho, não recusam devolver um depósito, não se aproximam do que não lhe pertencem. Honram pai e mãe, fazem bem ao próximo e, quando em juízo, julgam com equidade. Não adoram ídolos – semelhantes aos homens. O que não desejam que lhes façam, não o fazem também.... Aos escravos e escravas, bem como aos seus filhos – se os têm – persuadem a tornar-se cristãos, em razão do amor que lhes dedicam, e quando se tornam, chamam-nos indistintamente irmãos... não desprezam a viúva. Protegem o órfão dos que os tratam com violência. Possuindo bens, dão sem inveja aos que nada possuem.[4] E não para por aí, meus amigos! Quando um pobre ou necessitado surgia entre eles e não possuíam abundância de recursos para ajudá-lo, jejuavam dois ou três dias para obter o necessário para o seu sustento.
A carta de autor anônimo, recebida e propagada por Diogneto, apresentou mais nítida a relação que os cristãos mantinham com a sociedade: “Os cristãos residem em sua própria pátria, mas como residentes estrangeiros. Cumprem todos os seus deveres de cidadão e suportam todas as suas obrigações... obedecem às leis estabelecidas, e sua maneira de viver vai muito além das leis”. Essa carta deixou claro que os cristãos não construíram uma lei civil paralela e nem tampouco acatavam as ideologias de conduta anticristã. “...não levam vida extraordinária. Além disso, suas doutrinas não encontraram em pensamento ou cogitação de homens desorientados. Também não patrocinam, como fazem alguns, dogmas humanos... vivendo na carne, não vivem segundo a carne...E quando entregues à morte, recebem a vida. Na pobreza, enriquecem a muitos; desprovidos de tudo, sobram-lhes os bens. São desprezados, mas no meio das desonras, sentem-se glorificados. Difamados, mas justo; ultrajados, mas benditos, injuriados, prestam honra. ”
Seria uma ingenuidade achar que os primeiros cristãos enfrentaram tiranias e ideologias distintas daquelas que os cristãos enfrentam hoje. O documento – Súplica pelos cristãos – do filósofo cristão Atenágoras, enviado ao imperador Marco Aurélio, no ano de 181, já tratou de um tema atual, muito caro a nós – o aborto. Ao enfrentar uma acusação feita aos cristãos de assassinato e antropofagia, por má interpretação dos romanos acerca da eucaristia, Atenágoras respondeu ao imperador que “... os que praticam o aborto cometem homicídio e irão prestar contas a Deus, do aborto. Por que razão haveríamos de matar? Não se pode conciliar o pensamento de que uma mulher carrega no ventre um ser vivo, e, portanto, objeto da Providência Divina, com o de matar cedo o que já iniciou a vida...”. (3,10. APUD AQUINO, 2010, p.107)
A perseguição aos cristãos, por séculos, no fundo era perseguição à verdade por eles anunciada. Os cristãos jamais recuaram de sua conduta e, assim, atraíram com sua forma de vida fraterna reis e imperadores romanos. Com o fim das perseguições, no século IV, na era do imperador Constantino, o cristianismo se tornou a religião oficial de Roma e esse ato histórico trouxe consequências positivas e negativas para a fé. Trataremos desse assunto, aqui na revista, num outro momento.
Importa frisar que a igreja católica sempre compreendeu sua missão de ser luz no mundo e sal na terra, inspirando os homens quanto ao proceder nos diversos campos que compõem a existência humana, como a política, educação, trabalho entre outros. Como disse santo agostinho, no século IV: “A igreja é o mundo reconciliado”, [5] bem assim “a igreja avança em sua peregrinação através das perseguições do mundo e das consolações de Deus. ”
A igreja foi por séculos a inspiração e principal formadora dos reis e rainhas para os governos dos homens. Reis como São Luís da França e São Fernando da Espanha são arquétipos dos reis e rainhas que ao buscarem o auxílio da igreja para governar, estabeleceram uma governabilidade com uma sabedoria que nunca esteve presente nos três governos descritos por Platão: tirania, democracia e república.
A sociabilidade passou por profunda alteração na era moderna, o teocentrismo foi sendo substituído pelo antropocentrismo e, pouco a pouco, o ocidente foi se descristianizando. Os grandes marcos temporais desse processo de descristianização foram o renascimento, a reforma protestante e a revolução francesa. A nova sociabilidade apresenta um homem imanente, materialista, sem vida espiritual, sem vida familiar ou comunitária, atomizado, alienado por condições de trabalho degradante e com a inserção brutal em todos âmbitos da vida da inteligência artificial.
Nesse contexto, a Igreja tem, através da Tradição e do Magistério, a árdua missão de ser um farol em face da confusão produzida pelas ideologias características da modernidade e pós-modernidade.
O homem contemporâneo não tem vida interior, é um homem embrutecido e atrofiado intelectualmente, por isso presa fácil das ideologias, do totalitarismo, que surge com mais força.
A política moderna é um reflexo desse homem fraturado, fechado na imanência, razão pela qual ele deposita na política esperança irrealizável, qual seja, de um paraíso terrestre, onde ele possa saciar todos os seus anseios. Assim, a política passa a ter status de religião.
O marxismo manifesta adequadamente essa perspectiva de política com status religioso, pois propõe abertamente a inexistência de Deus e a entronização do homem com suas paixões no lugar que outrora era privativo da divindade.
A intensificação da crise moral na modernidade é fomentada por diversas ideologias. A política, atingida pela crise moral, retroalimenta essa crise através de governos revolucionários laicistas, sem Deus. O meio político, então, resume-se a trapaças e desesperos.
O resgate da política está intimamente relacionado ao reerguimento do homem, de sua inteligência, de sua espiritualidade. E essa tarefa só a Igreja pode realizar, ela tem expertise para tal, e somente ela, pois já demonstrou isso construindo a civilização ocidental com todo seu esplendor.
Uma vez que os políticos se afastaram da Verdade – O Cristo Salvador – como então responder a este cenário? O combate que os cristãos têm pela frente é com a formação da sociedade atual, despertar para a história real da cristandade que regenerou a sociabilidade ocidental a partir da regeneração de cada homem. Aqui não falamos de arqueologismos, ou seja, não temos a ingênua pretensão de resgatar o modus operandis da idade média e nem tampouco resgatar apenas os estudos dos clássicos como uma forma do saber. Debelar a crise moral é a única saída.
Onde nós cristão devemos concentrar nossas energias para sinalizar uma solução a essa crise? A resposta já foi dada no início da era cristã. Os cristãos devem sempre ser um farol de justiça, assim como os primeiros cristão que se mantiveram na contracorrente da cultura pagã de morte e destruição da humanidade. Qual o espaço de atuação dos cristãos? No ordinário da vida, pois é aí que a vida acontece verdadeiramente. O cristianismo é a religião de altíssima pretensão, não aceita parcialidade, ou o homem submete tudo aos imperativos da fé revelada, ou jamais será um cristão verdadeiro. Por ser assim, onde aparece o cristianismo verdadeiro, todas as estruturas humanas são transfiguradas: política, educação, trabalho, economia e assim por diante.
A pretensão da revista Manifesto Feminino é estabelecer um diálogo sério acerca das ideologias que tentam impor uma mentalidade hegemônica sobre o modo de ser e pensar do universo feminino. As mulheres cristãs não ocupam o espaço político movidas por uma guerra entre os sexos, mas foram e continuam sendo a face de Cristo, seja pela ação intelectual, seja pela ação prática da caridade. Mulheres convictas que a humanidade religada a Deus, buscará a justiça e equidade entre os homens.
Sigamos! Há muito trabalho pela frente e não devemos desistir, temos nas figuras de Marta e Maria os dois pulmões pelos quais devemos respirar: a vida prática e devota a Nosso Senhor e vida mística e contemplativa, que age com fé e esperança acreditando na graça atual que recebemos constantemente na oração.
[1] Fragmentos retirados da obra “Política” de Aristóteles da editora Edipro. 2019.
[2] Leitura obrigatória para entender o conceito de cristandade e os séculos de cristandade é a obro de Pe. Alfredo Sáenz, SJ. “ A cristandade e sua cosmovisão”. Ed. CDB.2020
[3] Sagrada escritura; novo testamento, capítulos 2 e 4 de São Tiago.
[4] Confira os referidos documentos na obra do prof. Felipe Aquino. A sagrada escritura, coleção Escola da fé, vl I. 7ª edição. Ed. Cleófas. 2010.
[5] Confira a obra “cidade de Deus” do bispo e doutor da igreja católica, Santo Agostinho.
Artigo escrito por Clara Bezerra, membro do grupo Gratia et Labore.
Conheça o grupo de estudos em busca da verdadeira essência e vocação feminina. O Gratia et Labore (@gratiaetlabore) faz parte do apostolado do @centrodomhenriquesoares em Aracaju/SE.